sexta-feira, 23 de julho de 2010

Direitos autorais: Minc x músicos

Você tem um Ipod? Sabia que está cometendo um crime ao ouvir suas músicas favoritas que gravou nesse aparelhinho? Sabia também que, quando aquele DJ utiliza trechos de músicas, deve pagar direitos autorais sobre todas? Acredita que, até hoje, a prática do jabá é constante pelo Brasil afora e que no Nordeste é comum ver gravadoras pagando para que as rádios não toquem canções dos artistas concorrentes? Já contaram que tirar xerox daquele livro cuja edição está esgotada ou assistir a filme em sala de aula são ações ainda proibidas?


Há um abismo entre as práticas sociais da atualidade e o que está determinado na Lei dos Direitos Autorais. A tecnologia traz novidades e, hoje, a troca de músicas, textos, imagens e vídeos por meio da Internet faz com que as regras referentes aos direitos dos criadores sejam questionadas por muitos intelectuais.


Para tentar adequar as necessidades dos autores às dos usuários, vislumbrando uma realidade de intensa troca de arquivos eletrônicos, o Ministério da Cultura (Minc) lançou, mês passado, consulta pública sobre o anteprojeto que altera a Lei dos Direitos Autorais (nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998).


Entre as propostas estão a criminalização do Jabá, a permissão para cópias de bens comprados legalmente para uso pessoal (como uma cópia do CD para MP3) e a criação de mecanismos para que obras possam ser copiadas para conservação (digitalização de músicas e filmes, por exemplo).


A principal diferença é que a nova legislação prevê espaço para uso amigável e também maior flexibilidade aos autores à discussão de prazos e condições de cessão.


Mas as ideias do Minc não estão sendo bem recebidas por boa parte da classe musical. Dois pontos geram grande polêmica: a criação do Instituto Brasileiro de Direito Autoral, com a finalidade de regular e supervisionar as entidades de arrecadação de direitos, e a retirada do “poder absoluto” do autor sobre sua própria obra – mesmo que o autor não aprove a reprodução de uma música sua, o Ministério da Cultura pode permiti-la, em nome do “acesso à cultura”.


Fernando Brant, presidente da União Brasileira de Compositores (UBC), é categórico ao afirmar que o Minc não pode alterar a estrutura de uma lei votada em plenário, depois de dez anos de reivindicação da classe artística.


“Essa é uma tentativa de intervenção do Estado em um direito privado que é a propriedade intelectual. Poderia haver uma modernização da lei, mas o que eles querem é mudar toda a estrutura”, afirma o compositor mineiro.


Para ele, a fiscalização sobre o Ecad já é feita pelos ministérios da Fazenda e do Trabalho – por ser uma entidade privada – e quem deve observar a arrecadação e a distribuição dos valores referentes aos direitos autorais são os artistas.


Várias associações de músicos e o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) promoveram uma grande manifestação no mês passado, na Sala Baden Powell, no Rio de Janeiro. Entre os artistas presentes estavam Sandra de Sá, Rick (da dupla Rick e Renner), Danilo Caymmi, Fernando Brant, Nei Lopes, Walter Franco e Selma Reis.


A cantora Joelma, sucesso com “Pombinha Branca” há duas décadas, estava entre os indignados. “Nós levamos dez anos para discutir o que desejávamos e já utilizamos a lei há 11 anos. Querem tirar da mão do autor a propriedade”, protesta. “Eu quero ter o direito de dizer ‘não vai tocar’ ou ‘não vai gravar’ a minha música. O que o Ministério pretende é inconstitucional” – afirma a cantora, completando que juristas também estão contra às propostas do Minc.


Durante a manifestação, Joelma cantou a canção que, diz ela, é o hino da luta contra a mudança na lei: “Tira a mão do meu direito/ quem anda direito sou eu/ tira a mão do meu dinheiro/ quem manda nele sou eu”.


Pedro Luís, líder das bandas Monobloco e Pedro Luís e A Parede, também não concorda com a proposta de criação de órgão federal para fiscalizar o caminho do dinheiro dos direitos autorais.


“As associações de músicos têm conseguido se organizar cada vez melhor, evoluíram muito nos últimos anos. Claro que têm que melhorar a arrecadação, mas já é muito melhor do que há 20 anos, quando comecei. Para que aumentar a burocratização se já existe um sistema que funciona?”, opina o músico.


Muitos artistas reclamam que o Minc não os consultou para que o anteprojeto fosse desenvolvido. Mas todos podem dar sua opinião na consulta pública disponibilizada no site do Ministério.


De quem é o som nosso de cada dia?


De acordo com Renato Dolabella, professor universitário e advogado especialista em Propriedade Intelectual, o que está em discussão, com a proposta de nova lei dos direitos autorais, não é a existência de uma entidade de arrecadação de direitos autorais, como o Ecad, nem a necessidade de se pagar os direitos devidos aos criadores. Para ele, o que Estado e sociedade civil devem levar em conta é a busca do equilíbrio entre interesses dos autores e dos usuários da arte.


“A consulta pública é muito positiva, pois a legislação merece uma revisão. Há uma série de questões que merecem uma discussão mais profunda e crítica”, registra o advogado, que acredita na importância de se rever o trabalho do Ecad.


De acordo com Dolabella, o Ecad está sendo investigado pela Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça por formação de cartel. “O Ecad é formado por várias associações e todas estipularam o mesmo valor pelas músicas. Isso atrapalha a concorrência no mercado fonográfico. Cada associação poderia ter um preço, e uma rádio, por exemplo, escolheria tocar as músicas daquela que oferece os melhores valores”, explica o especialista.


“Ninguém questiona a existência do Ecad, mas sim a forma com que seu trabalho é exercido, se sua atuação é abusiva ou não”, completa.


Para Fernando Brant, direitos do consumidor não podem ser colocados no mesmo baú dos direitos autorais. “Quando minha música é tocada numa rádio ou numa televisão, não há uma relação entre mim e o consumidor. A relação é entre ele e a emissora. Quem estipula o preço somos nós músicos. Quem não concorda em pagar os direitos não pode tocá-la”.


O compositor mineiro Celso Adolfo espera que essa conversa não caminhe para o fim das entidades de arrecadação. “Já vi muitos políticos desejando o fim do Ecad. Como eles são donos de emissoras de rádio e TV, querem que o direito autoral acabe para terem maior lucro. Mas se eles podem ganhar dinheiro com a música em seus programas, por que nós artistas também não podemos?”, questiona.


Vander Lee afirma que o problema não é a legislação, mas a arrecadação. “A minha carreira só cresce e os meus rendimentos caem porque não há arrecadação na internet. Quem deve pagar pelos direitos autorais são os donos dos portais, que ganham dinheiro com publicidade em páginas que disponibilizam nossas músicas gratuitamente. Temos que encontrar uma maneira de tributar a distribuição de músicas na internet”, afirma Vander Lee.


Vitor Santana vê pontos positivos nas propostas do Minc. De acordo com o músico, a tecnologia trouxe mudanças nos paradigmas da indústria fonográfica e a legislação deve estar de acordo com as novidades oferecidas pelos meios eletrônicos.


“Fui convencido de que deve haver uma supervisão do trabalho do Ecad, até porque isso existe em boa parte dos países europeus e da América Latina. Também achei ótimo ter a criminalização do jabá”. Entre os 20 maiores mercados de música no mundo, o Brasil é o único que não possui estruturas administrativas estatais para supervisionar esse tipo de arrecadação.


Mas o cantor e compositor acredita que se deve respeitar o pagamento devido aos autores, principalmente porque muitos compositores vivem apenas de seus direitos autorais, pois não fazem shows. “Meus parceiros Fernando Brant e Murilo Antunes não podem ser prejudicados depois de terem sido pessoas importantes para a construção do patrimônio cultural brasileiro”, registra Santana.


Outros artistas têm defendido a iniciativa do Minc. Tim Rescala, Roberto Frejat e Luiz Caldas são alguns nomes que já se pronunciaram, publicamente, pela criação de um órgão que possa fiscalizar a atuação do Ecad.


Em artigo publicado no jornal “O Globo”, o antropólogo e criador do site Overmundo, Hermano Vianna, é um dos defensores das mudanças previstas no anteprojeto.


“Ter um carro é diferente de ter um livro. Se alguém rouba meu carro, fico sem o carro. Mas, se alguém me rouba um livro já lido, fico sem o objeto de papel; porém, seu conteúdo continuará presente em minha memória, já misturado às minhas próprias ideias, gerando novas ideias impulsionadas pela leitura. O conteúdo do livro passa a ser propriedade coletiva depois de determinado tempo, podendo ser usado por todos, em nome do bem comum”, escreve Vianna.


Por nota, o Ecad afirma que só vai se pronunciar após analisar na íntegra o anteprojeto.


A entidade diz ainda que seu trabalho é auditado anualmente por empresas independentes de renome no mercado e pela Receita Federal.

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