quinta-feira, 4 de março de 2010

Preciosa - um soco no estômago



Abaixo, minha resenha sobre o ótimo livro "Preciosa" publicada ontem no Hoje em Dia:

Claireece Precious Jones é tudo o que a classe média não quer enxergar. Negra, obesa, mãe pela segunda vez aos 16 anos, vítima de violência sexual constante, analfabeta. Ela é a protagonista do livro “Preciosa”, best-seller da poetisa norte-americana Sapphire que inspirou o filme homônimo que concorre ao Oscar 2010 com seis indicações.
Num primeiro momento, o romance parece ser um dramalhão completo. Afinal, tudo o que há de mais desprezível na sociedade moderna perturba a vivência da jovem Precious. Mas não. A obra de Sapphire não tem a preocupação única de denunciar os silenciosos problemas vivenciados pelos excluídos do Harlem (bairro negro de Nova Iorque). Embora retrate de maneira vívida e chocante o sofrimento intenso de uma adolescente que engravidou duas vezes do próprio pai, “Preciosa” é um livro sobre a esperança, sobre a capacidade do ser humano de se reinventar, sobre o amadurecimento.Na trama, Precious é uma adolescente reprimida em todos ambientes possíveis. Em casa, é abusada pelo pai desde a infância e espancada pela mãe diariamente. Na escola, sonha em ter amigos, namorados, participar das aulas – mas a jovem não sabe nem ver as horas no relógio. Na rua e em todos os tradicionais ambientes de socialização, é apontada como a garota gorda e feia, nascida para ser vítima eterna de gozações. Como ela encara tudo isso? Com revolta, em silêncio. Precious é expulsa da escola quando sua segunda gravidez é revelada. A jovem é obrigada a buscar refúgio numa escola alternativa, onde irá descobrir que não é a única adolescente analfabeta na principal cidade do país mais rico do mundo. Seu destino será transformado pela dedicada professora Blue Rain, que mostrará a suas pupilas que o aprendizado está ao alcance de todas. A sinopse pode dar a impressão de que “Preciosa” é recheado de lugares-comuns, uma tentativa de provar que a educação é a solução para todas mazelas sociais. Mas Sapphire apresenta a história de uma maneira particularmente dura, embora flerte com a poesia em certo momento. Neste livro, vemos que a palavra realmente pode libertar e a poesia está ao alcance de todos, até mesmo de quem só descobre a leitura aos 16 anos. E não liberta apenas porque abre os olhos para perspectivas futuras. O ato de escrever pode permitir um melhor autoconhecimento, fundamental para as mudanças de atitude. Somente quando Blue Rain entra em sua vida, Precious decide acabar com a maneira resignada com que encara sua vida. Seu silêncio marcante é deixado de lado e a garota passa a aprender a ter voz.O livro é escrito em primeira pessoa e, por isso, com toda informalidade e erros de linguagem inerentes à narradora. As primeiras linhas do romance resumem bem o que o leitor vai encontrar: “Eu levei bomba quando tava com 12 anos por causa que tive um neném do meu pai. (...) Minha filha tem Sindro de Dao. É retardada.”Em muitos momentos, Sapphire mostra ser uma escritora dotada de extrema coragem ao nos expor problemas ainda encarados como tabus. A todo momento, a personagem lembra dos estupros e seus sentimentos são dúbios em relação aos abusos. Ela sabe que era errado o incesto, mas isso não tira dela o prazer que o sexo lhe proporcionava. Com isso, a autora trata do porquê do trauma que o abuso sexual deixa nas vítimas: como algo que pode ser tão bom, pode ser tão errado?Com o título original de “Push” (empurre), o livro foi lançado originalmente em 1996. Sua construção foi feita a partir de um trabalho social que a autora desenvolveu em um abrigo para mulheres no Harlem. Embora Precious não tenha existido na realidade, muitas das pessoas com quem Sapphire conviveu no bairro negro possuem histórias parecidas com a personagem. A autora já disse em entrevista que conheceu uma garota que engravidou aos 12 anos do próprio pai. A escritora baseou-se também em seu vasto conhecimento sobre o universo literário feminino. Inclusive, sua principal inspiração foi o livro “Quarto de Desejo”, da brasileira Carolina Maria de Jesus – uma catadora de lixo semianalfabeta que se tornou escritora best seller no Brasil na década de 1960.A história de Preciosa agora ganha grandes proporções graças ao sucesso que o filme dirigido por Lee Daniels vem fazendo em cinemas de todo o mundo. As bilheterias podem aumentar ainda mais se o filme levar alguma estatueta para casa neste domingo, na 82ª edição do Oscar – a cantora Monique, intérprete da mãe de Precious, é forte concorrente para a categoria de atriz coadjuvante.Mas por melhor que seja a direção da versão cinematográfica de “Preciosa”, há elementos valiosos do livro que não puderam ser transmitidos para a telona. Entre eles, os já citados conflitos internos da personagem em relação ao próprio pai. Os bilhetes trocados entre aluna e professora, tão fundamentais na trama do romance, também perdem a força no longa-metragem. Assim como os singelos e reveladores poemas de Precious – a personagem só é revelada como poetisa na sequência final do filme, quando sua mãe afirma “soube que minha filha está escrevendo poesias”.Isso tudo não está no filme porque “Preciosa” é mais do que a trajetória de uma nova-iorquina excluída: é também um belo exercício sobre o poder da palavra e da linguagem dos renegados.

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